sábado, 22 de janeiro de 2011

A Física e a Filosofia de Heisenberg

Em "Physics and Philosophy", Heisenberg faz com que vejamos os erros da ciência e da filosofia do nosso século. Ao virar a última página de sua obra, fiquei com perguntas que o autor, lá no longínquo 1959, não poderia talvez esperar que seu texto provocasse. Em que momento deixamos de formar cientistas com formação profunda em filosofia, com interesse genuíno em arte e aptos para falar do mundo fora da idealização científica?  Em que momento deixamos de formar filósofos aptos a dialogar com a ciência, a buscar na ciência inspiração, motivação e conteúdo para seus trabalhos, como todos os grandes filósofos, de Aristóteles a Kant, sempre fizeram?

Heisenberg conta-nos um pouco sobre o que ele espera dos próximos 50 anos. 50 anos estes que já passaram. Fala da linguagem, da lógica, da matemática e da forma com que elas relacionam-se com a realidade. Escreve-nos sobre rompimentos (e alguns acertos) entre a física quântica e Kant, da ruptura entre a física do século XX e toda filosofia antes dela, e, acima de tudo, conta-nos porque os ensinamentos de tal ciência deveriam provocar uma divisão de águas e uma revisão das nossas pretensões de aplicar uma mesma linguagem precisa, lógica e matemática para descrever todos os fenômenos, em todos os campos e todas as áreas. Heisenberg esperava que uma nova tendência pudesse emergir da ciência, como tantas outras vezes na história da humanidade, e pudesse contaminar  também o pensamento filosófico. Então, a filosofia viraria os seus olhos não para a precisão da linguagem científica clássica, em uma busca de "exatidão filosófica", mas para a ambiguidade da linguagem da física moderna. Para Heisenberg a física do século XX provara que tal ambiguidade é capaz de descrever a realidade, de tocar o real, com muito mais sucesso, de forma muito mais estável, do que os modelos clássicos idealizados. O mundo é mais rico e caótico do que supunha a pretensão racionalista da física-matemática.

Heisenberg, em 1959, ecoa a Murdoch de 1992. Lembra-nos que a geração anterior a minha não fez seu dever de casa. A filosofia fechou seus olhos para a revolução científica do século passado. Pouco dela discutiu, pouco dela se atraveu a debater. E a própria ciência, mesmo hoje depois dos experimentos de Aspect que, em prática, elegeram a interpretação de Copenhagem para a mecânica quântica (a interpretação defendida por Heisenberg) como a única interpretação consistente com os dados experimentais, pretende supor que o que se passa no mundo quântico não afeta o "nosso mundo real", de cérebros, computadores e bolas de futebol, não diz respeito a uma "realidade relevante", mas é como um Wonderland de Alice, que pode ser fechado em um livro e enfiado na prateleira. Mas o físico alemão lembra-nos que as equações quânticas possuem soluções que não existem nas equações clássicas, e por isso tais soluções, mesmo no limite clássico, não possuem correspondência com nada do que teorizávamos como "nosso mundo real". Nenhuma macro-molécula, nem mesmo a serotonina no seu cérebro, poderia ser "real" sem supor uma estrutura quântica por trás, pois nem mesmo os átomos, dos quais ela é feita, seriam estáveis sem o caos e a imprecisão da realidade quântica. Não há como explicar a "realidade" da serotonina sem usar a mecânica quântica. E mesmo assim supomos não precisar desta para falarmos do que é, do que não é, do que faz o ser e o não-ser.

Há muito trabalho para ser feito. Há muita coisa para ser criada. Os últimos 50 anos foram silentes demais e hoje pagamos o preço. No vácuo deixado pela filosofia e ciência contemporânea, os únicos que ousaram falar do quântico, fizeram de forma irresponsável para promoção pessoal. A mecânica quântica não é uma teoria de espiritualismo, não abre espaço para o "poder da mente", ou para um "criador". Não é a janela na física para a pseudo-ciência, ou para o relativismo. A física quântica aponta para o absoluto: há sim algo lá fora, independente de nós. A diferença é que este algo é muito mais estranho que Newton supunha, é impossível de ser compreendido com uma linguagem precisa, é um algo tocado pela ambiguidade. Ela aponta para uma "coisa-em-si" que é pura potência, um fundamento último que não tem análogo materialista. Que a filosofia e a ciência pretendam fechar os olhos para este novo modo de compreender o mundo é um fenômeno que não faz mais do que retratar os nossos tempos: tempos de superficialidade,  de hedonismo, de valorização da aparência em detrimento do conteúdo, tempos em que o poder está em um mercado impessoal e global (presente não só em todos os locais, mas em todas atividades humanas), causando homogenização dos indivíduos, do pensamento, e a castração "democrática" que todos testemunhamos. 

São tempos em que nossas universidades formam Zuckerbergs, mas nenhum Heisenberg.